segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Bela cidade!

            Os candidatos que estão na disputa eleitoral, pelos cargos executivo e legislativo, têm uma dívida com o povo: apresentar um projeto de cidade “bela”.
            As cidades merecem ser tratadas como algo belo. Útil, mas belo. Prático, mas belo. Funcional, mas belo.
            Não, os cidadãos não querem uma cidade bonitinha, ingênua, agradável e fácil. A cidadania merece o belo que é útil, prático e funcional. Aqueles que desejam exercer funções tão importantes devem isto ao povo.
            A beleza é reprimida todas as vezes que viver nas cidades se torna disfuncional, não-prático e sem utilidade. Numa palavra: sofrível.
            A beleza está reprimida em nossas lembranças e sensações com ela própria. É como se a beleza fosse artigo supérfluo e insignificante diante de tantas necessidades. Isto quer dizer que estamos perdendo a sensibilidade que só a beleza oferece.
            Erramos denominando de belo apenas ao visual dos lugares como: canteiros centrais floridos, árvores com refletores de lâmpadas coloridas, semáforos modernos, uma escultura ou monumentos em praças, iluminação especial.
            Entretanto, precisamos considerar a que estilo de vida estes investimentos têm nos levado: poluição sonora e atmosférica; alta concentração de pessoas em espaços apertados; valorização imobiliária que leva ao enriquecimento de poucos e, consequente, empobrecimento da grande maioria por não terem acesso aos mesmos recursos; tráfego pesado e poucas vagas de estacionamento; pouco tempo para se alimentar convenientemente; gastos com combustíveis, porque as moradias estão mais distantes dos locais de trabalho; péssimo serviço de transporte público; etc.
            Tais condições geram: alto índice de absenteísmo, obsessões sexuais, abandono das escolas e baixo índice de aprendizagem, alimentação compulsiva, dependência química, escapismos em forma de viagens turísticas, violência, irritação e raiva, ataques de pânico, ansiedade, distúrbios de caráter, etc.
            Lembremo-nos: Narciso se afogou não por si mesmo, não pelo reflexo na água, mas pelo distúrbio da beleza que o levou à desordem, à feiúra, à morte.
            Não, a beleza não está nos olhos que quem vê. Não, a beleza não é relativa.
            A beleza é o perfume que os deuses nos deixam quando nos visitam. Está no incomum, no maravilhoso, no delicioso, no “do-outro-mundo”. Infelizmente, tendemos a tornar tudo como comum, corriqueiro, normal. E, os políticos nos devem isto: revelar o incomum no comum, executar projetos que nos levem a qualidade de vida, liberdade, aos prazeres dos sentidos e não aos avanços tecnológicos sem alma, a doçura e ternura.
            O melhor que os candidatos podem fazer pelo povo começa com o que podem fazer com eles, se perguntando, por exemplo: por que gosto da minha cidade, por que é gostosa para mim e para minha família, ou por que é gostosa para todos? Esta cidade me inspira a viver como humano, ou como um empresário, comerciante, médico, psicólogo, militar, professor? Que sentido tem as palavras de Rainer M. Rilke para mim: “Abandone a selvageria. Seja terno ao toque. Acaricie a você mesmo, para sentir que você é suave. É o seu próprio centro que você acaricia. Sua reflexão deve ser suave como a luz da manhã. E, desta forma, você nos mostrará como Narciso é redimido!”

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)

O ‘ouro’ de Thiago Braz da Silva

            O campeão e recordista olímpico no Salto com Vara, o mariliense Thiago Braz da Silva, medalha de ouro nos Jogos Olímpicos Rio 2016, compartilhou um pouco de sua história de vida e carreira esportiva: abandonado pela mãe e criado pelos avós, por dias esperou, com a mochila nas costas, que a mãe retornasse para buscá-lo, o que nunca aconteceu; conheceu a modalidade através do seu tio Fabiano Braz; e, há dois anos passou a ser treinado pelo técnico ucraniano Vitaly Petrov.
            Sua história de vida revela mais do que um caso de superação: Thiago se aproxima das feridas que a vida lhe infligiu (injusta e erradamente), dos segredos e das confissões de suas orações mais íntimas, da criança e da infância imaginárias, isto é, daquilo que Sigmund Freud e Carl Gustav Jung concordam – a criança e a infância filogenética, além da criança e infância reais, pois é imaginal, arquetípica, não-empírica.
            Neste sentido, Thiago nos oferece uma grande oportunidade para refletirmos quanto a “nossa” criança e infância: tudo aquilo que é simples, ingênuo, rejeitado, pobre, abandonado, comum – o órfão – da sociedade e da psique, mas que nestas condições pode alterar pelo enfrentamento as duras realidades a que estamos sujeitos.
            Não apenas devemos nos sentir responsáveis pela “nossa” criança e infância, social e psiquicamente, mas sentir que somos a própria criança e infância que precisa de atenção, cuidados, amparo, acolhimento se não quisermos vivenciar a imagem da criança morta, da esperança perdida, da falta de criatividade e de sentido.
            “Nós descobrimos a criança abandonada acima de tudo nos sonhos, onde nós próprios, ou uma criança nossa, ou uma desconhecida, é negligenciada, esquecida, chora, está em perigo ou em necessidade. A criança afirma sua presença através dos sonhos; mesmo abandonada podemos ouvi-la, escutar seu chamado”, segundo James Hillman (Estudos de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981, p. 26-27).
            Precisamos ir além da culpa que esta situação pode nos trazer, aliás, nos envolver participativamente com toda a história que envolve as condições de abandono e rejeição para que não se repitam, cuidando dos elementos novos e tenros que precisam de ajuda para crescer.
            Tendemos a achar que existe alguma coisa fundamentalmente errada na criança que a faz um ser frágil, carente, perversa (como querem alguns da psicologia) e, por isso mesmo sujeita ao abandono. Empenhamo-nos a tirá-la da condição da infância pela educação, batismo, imunização. Não as aceitamos como são. Assim impedimos a criança de cumprir a sua função, a de alterar a personalidade, fazer a combinação dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade.
            Thiago expõe ao mundo que o abandono e perigo sofridos são como condições para o desenvolvimento da capacidade de ser independente; de experimentar-se no processo de maturação dos fatores contrastantes da personalidade, em busca de uma amplitude de consciência; de forças interiores para enfrentar os perigos e as agressões.
            O ‘ouro’ que Thiago pôs em nosso peito é o do “motivo da criança”, como afirma Jung: “A criança é tudo o que é abandonado, exposto e ao mesmo tempo o divinamente poderoso; ela é o início insignificante, duvidoso, e o fim triunfante. A ‘eterna criança’ no homem é uma experiência indescritível; um estado de inadaptação, uma desvantagem e uma prerrogativa divinas; em último lugar, um imponderável que constitui o valor ou desvalor último de uma personalidade” (Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 178).

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Pai e filha

            Em tempos de misoginia – ódio, desprezo e repulsa ao gênero feminino e às características a ele associadas -, violência doméstica e nas ruas, cumprir com as exigências culturais e econômicas como trabalhar fora, educar os filhos, cuidar da casa, atender aos padrões de beleza e da moda, competir no mercado de trabalho, tem se mostrado um grande desafio para a grande maioria das mulheres.
            Neste contexto, o pai desempenha um papel crucial na vida das filhas, independente da faixa etária, se quiser exercer uma paternidade suficientemente boa.
            O pai é a pessoa que pode comunicar à filha, com segurança, que ela pode ser mulher num mundo que exige muito dela, sem que despreze sua feminilidade.
            É ele que favorece a ideia de que ela pode, inclusive, ser mãe, isto é, dá acesso aos vários caminhos que estão disponíveis em nossa cultura, para que ela escolha, decida e continue a ser quem ela é, que desenvolva e explore, como mulher, seu pleno potencial, sua identidade pessoal, sua vocação, seu lado assertivo e agressivo, sua expressão sexual, seu caminho espiritual.
            “O resultado da luta de uma mulher para sentir-se psicológica e socialmente inteira e integrada, e ao mesmo tempo ser psicológica e socialmente diversificada é, em grande medida, moldado pelo relacionamento pai-filha”, afirma o analista junguiano Andrew Samuels, em “A psique política” (Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 179).
            As filhas esperam que seus pais sejam homens não aliados aos padrões restritivos colocados sobre as mulheres, mas sim, alguém para quem existem muitas perspectivas e modos de ser mulher.
            É importante que o relacionamento pai-filha seja travado numa energia psicológica que ela viva coerentemente com seus próprios sentimentos, impulsos, fantasias e instintos, sem a famigerada culpa da “supermulher” e “supermãe” conforme os padrões veiculados pelos meios de comunicação dirigidos ao público feminino.
            O relacionamento pai-filha atua como pano de fundo e pode ser suficiente ou insuficiente, quer dizer, proporcionar satisfação ou insatisfação à vida da mulher.
            Não são poucas as mulheres que tentam manter sua agressão fora de seu casamento e sob controle no trabalho, mas são consumidas pelo medo de que podem explodir num “ataque de nervos”, por que seus pais reprimem, não aprovam, e/ou não sabem lidar com a agressividade delas.
            Sentimentos, impulsos, fantasias e instintos nos caracterizam como seres humanos, e as mulheres têm direito de expressá-los. E, os pais exercem um crucial papel nisso, no sentido de ajudar as filhas a lidarem com isto sem culpa, ao contrário, valorizar-se e integrar os fatores inconscientes ao modo de ser mulher.
            Os efeitos de um pai emocional ou fisicamente ausente/distante podem ser profundos para a filha: sentir-se desvalidada pelos homens, até pelos filhos que venha a ter ou já têm; achar que não possui nenhum poder de sedução e ser deixada pelo/a companheiro/a; ter pouca confiança em si mesma, em suas capacidades de trabalho principalmente se trabalha com homens menos capazes do que ela.
            Reflita sobre isso, se você é pai de uma mulher. Feliz Dia dos Pais!

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Conscientização: Fundamento da Democracia

            Nem sempre as imagens comunicam a verdadeira face das pessoas e seus reais objetivos. Muito facilmente nos deixamos envolver por imagens sentimentalmente embelezadas, como se a realidade não tivesse obscuridades.
            Por exemplo: o governo interino do País utiliza a imagem da Bandeira Nacional com o lema “Ordem e Progresso”, como plataforma ideológica de defender decisões liberais, na tentativa de conservar e aperfeiçoar aquilo que existe de bom, a “Ordem”, através da correção e eliminação do que é ruim, para se alcançar o “Progresso”.
            Sim, até governo interino tem ideologia; e, a desse é defender a doutrina religiosa positivista: a busca e a manutenção de condições sociais básicas – “respeito aos seres humanos, salários dignos e o melhoramento material, intelectual e moral” da Nação -, conforme a definição do referido lema no portal Wikipédia, que o próprio governo tem se utilizado e processado alterações na defesa de seus interesses. Entretanto, as suas propostas e decisões têm mostrado a direção contrária a estes conceitos. A hipocrisia, como manifestação da perversão, se desmascara.
            Neste contexto, nossos olhares precisam refletir sobre os acontecimentos históricos, remotos e contemporâneos, que marcam a nossa democracia. A justificativa para esse exercício está além de uma mera oposição ao governo interino e seus planos, mas, trata-se de, séria e verdadeiramente, procurarmos relacionar o desenvolvimento político com o nosso desenvolvimento psicológico pessoal com a democracia.
            Esse desenvolvimento não é alcançado se permanecermos em nossas “zonas de conforto”. É preciso um envolvimento pessoal com os conteúdos do inconsciente cultural brasileiro que tocam às fragilidades do nosso processo democrático.
            Não podemos encobrir com subterfúgios as tragédias político-sociais e econômicas experimentadas pela sociedade brasileira. Antes, temos de exigir de nós mesmos um envolvimento profundo com as condições deste momento, assumindo nossas sombras pessoais e enfrentar os fatores políticos do processo em curso, do contrário, as nossas estruturas psicológicas e sociais sofrerão fortes abalos. A conscientização política e psicológica é o fundamento da vida democrática de um povo.
            Temos de entrar em acordo, depressa, com a nossa memória histórica. Quando o tempo passado se ausenta, o presente é romantizado. O apagamento e desapego da história enganam com uma aparente inofensiva inocência.
            Portanto, o desenvolvimento político passa por um desenvolvimento psicológico quando nos relacionamos com os fatores inconscientes que nos levam a um distanciamento dos processos históricos da nossa democracia. O processo democrático real depende da relação política com as nossas zonas externas e internas, do mundo real e do reino interior, da relação consciência e inconsciente.
            A Bandeira Brasileira tem mais do que “Ordem e Progresso” – empobrecemos o processo político interno e externo se nos identificarmos com isto, apenas. Temos de ir além da beleza sentimental da imagem verde e amarela.
            “Aquilo a que damos o nome de civilização, [...] tem uma outra face, a de uma ave de rapina cruelmente tensa, espreitando a próxima vítima, face digna de uma raça de larápios e de piratas. Todas a águias e outros animais rapaces que ornam nossos escudos heráldicos me parecem os representantes psicológicos apropriados de nossa verdadeira natureza”, afirma C. G. Jung (Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 250).

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)