domingo, 13 de novembro de 2016

Detestável Mundo Novo

por Silvia Graubart

Por acaso você já leu a trilogia da ficção científica que marcou época no século XX? Do Admirável Mundo Novoescrito por Aldous Huxley, ao 1984de George Orwell e Laranja Mecânicafruto da imaginação de Anthony BurgessSe não leu, com certeza ao menos ouviu falar

Seriam essas obras uma antecipação do que vivemos hoje? E, ao contrário do que poderíamos pensar, não se tornaramficções obsoletas, e sim retratos de um presente capturado no passado. Elas mostram que nada é mais verdadeiro do que os potenciais efeitos destrutivos do progresso científico irrefreado, que põe em perigo tanto o futuro doplaneta quanto o futuro dos nossos jovens.

Huxley escreveu sobre uma sociedade organizada segundo princípios científicos, onde o controle social não dá espaço ao acaso1984 apresentou uma visão apocalíptica defuturo, onde todos são vigiados e controlados pelo Grande Irmão – o Big Brother da telinha. E Laranja Mecânicaretratou a violência que toma conta dos jovens, que roubam, espancam, estupram e matam qualquer pessoa, numa sociedade fora de controle.

Misto de histeria e hiperaceleração, estsituação começou lá atrás, provavelmente com a revolução industrial, e chegou aos dias de hoje transfigurando a capacidade de nos comunicarmos a partir da tecnologia. Ah... Atecnologia da internet! Como precisamos repensar a maneira de usá-la.

Estamos, o tempo todo, conectados a smartphones ou tabletsAproveite o seu e veja agora, no Youtube, aanimação crítica feita pelo ilustrador Steve Cutts e o compositor de música eletrônica Moby para a canção Are you lost in the world like me? (Você está perdido no mundo como eu?). Acompanhe o menino solitário navegando por um mundo consumido pela tecnologia, onde não existe interação entre as pessoas; surpreenda-se com a moça triste, que sorri apenas ao se enquadrar para uma selfie; com os dois homens que não param de digitar a palavra ‘LOL’ (que significa riso) ao seguiremoticons sorridentes, mesmo que mostrem fisionomiascarregadas e a alegria esteja a incontáveis bits de distância.

A questão se complica ainda mais com os jogos online: The Chocking Game, por exemplo, foi responsável pela morte de um garoto de 13 anos, encontrado dentro do quarto do pai com uma corda enrolada no pescoço. Não, esta não é uma história de ficção: o garoto brincava este jogo de estrangulamento com três amigos, que teriam acompanhado seu enforcamento em tempo real, através da transmissão ao vivo por uma webcam.
Triste consequência do uso equivocado da tecnologia, que não invalida muito menos impede a intromissão do acaso. Melancólico resultado do nosso incorrigível fascínio por imagens literaisDetestável mundo novo, no qual a força, o descontrole e a violência incitam a uma irrefreável necessidade de ganhar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Que bicho você tem? Que bicho deu em você? Que bicho te mordeu?

Nossa identificação com os animais é mais próxima do que pensamos. Isto pode ser observado, por exemplo, ao empregarmos algumas expressões: “filho de peixe, peixinho é”, “este tem sangue de barata”, “lágrimas de crocodilo”, etc. Não é difícil imaginar-nos como animais. É como se tivéssemos os mesmos instintos.
Os animais fornecem a base dos nossos traços comportamentais: a agressividade de um cão; a feminilidade de uma gata; o ludibrio do macaco; a moleza da preguiça; a camuflagem do camaleão; a força do touro; a astúcia da raposa; a rapinagem do gavião; o veneno e/ou o curativo da cobra; o arroubo dos pássaros; a ligeireza do jumento - imortalizada na “Apologia do jumento”, de Luiz Gonzaga; etc.
As Sagradas Escrituras nos lembram: “Eu estou enviando vocês como ovelhas entre lobos. Sejam cautelosos como as serpentes e inofensivos como as pombas. Mas, cuidado!” (Evangelho de Mateus 10:16). Que bicho você tem? Somos todos!
Imaginamos e nos comportamos como ovelhas, lobos, serpentes, pombas. O mais significativo é que olhemos para nós e percebamos as nossas afinidades com os animais, isto é, se quisermos preservar-nos da extinção.
Combinar a prudência com a simplicidade pode significar a diferença entre a derrota e a vitória, a morte e a sobrevivência. Ser, ao mesmo tempo, astuto, cauteloso e sagaz, inofensivo, singelo e cândido é um dos pares de opostos que mais nos desafiam.
“Os animais poderiam fazer-nos conscientes de nós mesmos”, afirma James Hillman (Animais de sonho). Do cume da cadeia psicológica e moral, os animais nos alimentam com os ensinamentos de como podemos ser humanos.
Para ficarmos apenas com o “bestiário” evangélico: ovelha é seguidora, diz respeito ao nosso instinto de rebanho; aponta para uma fantasia paradisíaca “as ovelhas morarão junto dos lobos” (Isaías 11.6). Seria isto que explica a nossa pacata resignação em aceitar a decretação do fim de nossos direitos e seguirmos, calados, ao matadouro da liberdade e da cidadania?
O lobo é dono de uma determinação fria e inflexível, graças à sua raiva oculta; trapaceador - no conto “Chapeuzinho Vermelho”, foi capaz de se camuflar na vovó, sendo assim, o feminino devorador e obscuro; vorazmente faminto, sua inteligência pode levá-lo à morte; ressentido por não possuir tudo que quer, ataca a todos que cruza os seus caminhos, mesmo sabendo que pode perder até aquilo que tem, por julgar-se esperto e malandro. Do lobo, se formos determinados como ele, podemos fazer valer a inteligência estratégica e prevalecer os valores corretos sobre o mal de outros lobos.
A pomba vagueia por todo e qualquer lugar, bastando ter alimento disponível; sua natureza-pássaro a caracteriza pela volatilidade do voo; símbolo do espírito do bem, da gentileza e do Espírito Santo. Assim, a pomba revela instabilidade, ainda que identificada como “do bem”; é bom lembrar que logo após “descer” sobre Jesus, em seu batismo, o conduziu ao “deserto para ser tentado” (Mateus 3:16-4:1). Deixar-se levar pelo “bem”, pode significar inconstância e desprezo pelo que já foi conquistado.
A serpente possui vastas referências a sabedoria, porém, muito dissimulada; dona de uma pele elástica e que escama, revela a capacidade de renovar-se; é portadora do elixir da cura de sua picada mortal; ela exige atenção redobrada, para não deixar-se ser apanhado em um momento de distração. Nos conflitos humanos precisamos ser como a cobra: avançar, criteriosamente, sobre as dificuldades, sem cansar de ser forte.

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pelo Instituto de Psicologia Analítica de Campinas (IPAC), membro da Associação Junguiana do Brasil (AJB), ambos filiados à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535).

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Tweet de Roque Tadeu Gui no Twitter

Roque Tadeu Gui (@roquetadeu)
Ar frio. A chuva escorre como areia sobre um delicado papel de arroz. O corpo se recolhe debaixo das cobertas acolchoadas da cama solitária.

Tweet de Roque Tadeu Gui no Twitter

Roque Tadeu Gui (@roquetadeu)
Ar frio. A chuva escorre como areia sobre um delicado papel de arroz. O corpo se recolhe debaixo das cobertas acolchoadas da cama solitária.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Um lapso desculpável

por Roque Tadeu Gui

Desculpe! Erramos!

Acontece. Às vezes, no afã de escrever o texto, a gente tropeça. Foi o que ocorreu em minha crônica “Ingrid”.

Lá pelas tantas, faço uma referência à atriz Alicia Vikander, que emprestou voz à Ingrid para a narrativa de sua história. Associei Alicia ao filme Her (2013), quando, na verdade, pretendia me referir a Ex Machina (2015). Lambança geral na citação! Resta colocar ordem na bagunça.

A confusão se explica. Ambos os filmes são excelentes filmes de ficção. A atriz, em Her, é  Scarlett Johansson, no qual participa in off apenas com sua voz sedutora. Em Ex Machina, este sim, com Alicia Vikander, a atriz representa uma mulher criada em laboratório e portadora de sofisticada inteligência artificial. Gostei muito de ambos os filmes e em virtude de associações afetivas misturei tudo.

Aliás, Alicia Vikander está também em “A garota dinamarquesa” (The Danish Girl, 2015) e aparece cotada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Na crista da onda, a conterrânea de Ingrid!

O lapso inocente cometido pelo cronista talvez possa trazer alguma luz para a reflexão cinéfila. Ao assistir a um filme, nunca vemos apenas o filme. Mercê do fluxo imaginativo, estimulado pela película, cruzamos referências, fundimos imagens, conectamos emoções, transitamos de um filme para outro, sem a completa participação de nossa consciência. Diante de uma obra de arte, o impulso criativo de nossa mente não resiste a criar seu próprio enredo, suas histórias e seus personagens. A imaginação, qual diretor de nossa intimidade, altera roteiros, veste personagens, escala alguns, confere nuances afetivas.

É assim que, da voz de Scarlett se faz a voz de Alicia e desta a de Ingrid. Tudo envolto pelo fascínio do mundo feminino exposto em Her, Ex Machina e Jag är Ingrid. Sim, este último é o título, em sueco, do Eu sou Ingrid Bergman.

Ingrid

por Roque Tadeu Gui

Talvez uma vida somente possa ser compreendida quando vista do futuro para o passado.

Embora a ideia não seja original, ganhou evidência para mim ao assistir “Eu sou Ingrid Bergman”, filme realizado em homenagem aos 100 anos do nascimento da atriz sueca em 1915, dirigido por Stig Björkman, seu conterrâneo.

Uma cinebiografia narrada em primeira pessoa na voz de Alicia Vikander (Her, 2014), atriz contemporânea muito prestigiada na Suécia, alterego de Ingrid, baseada em diários, entrevistas e filmes amadores feitos pela própria Ingrid, enriquecida por comentários dos quatro filhos da atriz, mas nada de pieguice do tipo “mamãe era demais”!

Fica claro que Ingrid nasceu para atuar e, circunstancialmente, ser mãe. Mais amiga do que mãe, segundo ela mesma, e os filhos.

Ingrid foi uma quarta filha, única que vingou. Perdeu a mãe aos três anos e ficou aos cuidados do pai até os quinze, perdendo-o também.

Com o pai aprendeu a amar os filmes e, segundo a psicanalista que me acompanhou no programa de cinéfilo, aprendeu a gostar de ser vista por um homem por detrás de uma câmera. Daí seu desejo de reiterar a experiência ao longo da vida…

Com um corpo belo e forte, loira, verdadeira descendente viking, uma valquíria, encantou o cinema americano, italiano e francês. A começar por diretores como Hitchcock, George Cukor, Roberto Rosselini, Jean Renoir, Vincente Minelli e Ingmar Bergman.

Em nome da arte, os filhos sofrerão certo abandono, o mesmo vivido pela criança Ingrid, lançada ao mundo sem a companhia de irmãos, abandonada pela mãe morta e privada do olhar cinetoscópico do pai, segundo a opinião confiável de minha acompanhante psi.

Amará vários homens, encantar-se-á com diretores, substitutos do pai no ato confirmatório de ser admirada através das lentes. Percebo o olhar arguto e afirmativo de minha amiga…

Uma mulher que nasceu para atuar. Olhando a partir de hoje, um século passado, podemos compreender o que se passou.

Seria necessária a experiência, ainda que inominada à época, de sobreviver a três irmãos que não "estrearam" no mundo, se não houvesse algo a ser realizado? Uhm, posso sentir a desconfiança da psicanalista em relação a meu argumento: "isto está me parecendo teleologia, pré-determinação, destino, para dizer pouco!"

Mas, admitamos por um momento que o gênio performático encarnado por Ingrid precisava de circunstâncias especiais para vir ao mundo, sofrendo perdas que mobilizassem a energia necessária para realizar sua obra.

Se assim for, Ingrid perderá o olhar cinematográfico do pai para buscar ansiosamente o olhar do outro atrás da câmera. A perda da mãe, abandono simbólico (posso ver minha companheira sorrindo) lhe dará forças para deixar os filhos e realizar seu trabalho no mundo.

Minha amiga dirá que se tratava de narcisismo compensatório! Sei não… Talvez o gênio precisasse disso, se olharmos da frente para trás…

Dois pensamentos que talvez se encontrem em algum ponto.

Num, a pequena Ingrid, vítima de circunstâncias biográficas, repete o script traumático vida afora. Afortunadamente, converte seu sofrimento em trabalho de encantamento artístico. Minha amiga tem um nome bonito para isso: “sublimação”.

Noutro, a menina Ingrid é portadora de um gênio que utiliza as circunstâncias da vida para adquirir o estofo necessário para criar a obra de arte.

Em ambas as perspectivas, a personagem Ingrid não possui completa autoridade sobre si, mas cumpre um “a priori”, um desígnio, uma missão. Uma vida que não podia ser vivida de outra forma.

Volto-me para minha cúmplice cinematográfica. Percebo um discreto olhar de benevolente tolerância.

A Babel das Fotos

por Roque Tadeu Gui

Estou no alto do Hotel Las Américas, Cartagena das Índias, Colômbia. Comigo, esposa e casal amigo. Estamos no Pacífico, margeando o Caribe; a imensidão do mar, que vai de ponta a ponta do horizonte, cobre os 180 graus de visão. A vista é imponente. Abaixo, moradias que, vistas de cima, parecem casinhas de brinquedo, contrastando com a paisagem larga da natureza.

O impulso a fotografar as imagens estonteantes é quase que natural em tais ocasiões e concorre com o desejo de usufruir das sensações visuais e epidérmicas: aqui o vento forte sopra um calor escaldante que faz Natal e Fortaleza parecerem um paraíso morno.

Munidos de nossos celulares, clicamos ininterruptamente. Clique daqui, clique dali, e dou-me conta de que todos do meu pequeno grupo estão fotografando os mesmos objetos: o mar ali à frente, o horizonte aberto de ambos os lados, as residências, a vegetação, a cidade de Cartagena mais adiante.

Penso que mais tarde compartilharemos as mesmas imagens e teremos réplicas de tudo que foi fotografado. Em um mesmo rolo de câmera digital as fotos se misturarão e quase não saberemos o que foi eu que fotografei, o que foi minha mulher ou nossos amigos. O rápido compartilhamento por whatsapp cuidará de fazer a mescla final. Coisas da simultaneidade digital!

No jantar talvez tenhamos alguma discussão sobre quem foi o autor de alguma foto particularmente bem enquadrada. Mas, o sentimento geral será o de que não importa muito. Com tranquilidade, poderei assumir minha culpa por usurpar a autoria desta ou daquela foto.

Ao dar-me conta desses pensamentos, surpreendo-me com a ideia de terceirizar o clique fotográfico! Minha mulher já bateu, ou baterá, aquela foto, meu amigo também já clicou. Posso deixar de fazê-lo; de qualquer modo, ao final, as imagens repousarão em meu acervo pessoal. Guardarei algumas, descartarei outras, ao meu bel-prazer. Meu devaneio talvez anuncie a morte do fotógrafo, uma paráfrase da morte do autor.

Guardo meu celular e passo a observar os detalhes da paisagem. A observação pausada, despreocupada e fina, não facilmente compartilhada, talvez escape à Babel das Fotos.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Meiacinco

por Roque Tadeu Gui

Dia de seu aniversário. À noite, receberá alguns amigos, filhas, genros e netos para um jantar carinhosamente organizado pela mulher. 

Decide não trabalhar, tirar uma folga para perambular pela cidade, olhar vitrines, quem sabe comprar um par de sapatos novos, bem que está precisando, passar numa livraria, vício incontornável e, quem sabe, comprar mais uma caneta tinteiro para a sua coleção, daquelas que têm bombinha, porque as de cartucho são muito modernas e práticas e ele gosta mesmo é do modelo tradicional.
    

Bom jeito de passar o dia, curtir um pouco da solidão que tornará o encontro com a família e amigos ainda mais gratificante. Sabe da importância dessas criaturas que o acompanham vida afora, ainda que, por vezes, também o incomodem. Solidão é bom quando se tem para onde voltar.
    

Vai almoçar no restaurante libanês de sua preferência. Como sempre faz, pede um arak, com “apenas uma pedra de gelo”, e água com gás, que não será adicionada à bebida, porque então viraria um ouzo, bebida refrescante, de aspecto leitoso, apreciada pelos vizinhos gregos. Não! Arak puro! Vá lá, só com uma pedrinha de gelo para refrescar, mas deixando o teor etílico o mais íntegro possível.
    

Uma bela refeição! Não é glutão, mas aprecia uma boa comida. E delicia-se com o arak que só toma quando vem aqui. E divaga. Devaneia, pensamentos sem rumo, sem compromisso. Vai para o passado, flerta com o futuro, vagabundeia pelo presente.
    

Olha ao redor. Na mesa ao lado, duas senhoras. Sim, senhoras, não moças, não jovens, melhor, senhoras. Toma-se por referência. Se ele é um senhor, como todos insistem, então as vizinhas de mesa são senhoras! Ponto.
    

Chama-lhe a atenção aquela que está em seu angulo de visão. Rosto cheinho, não gordo, com certeza. Cheinho, próprio da idade, viçoso. Cabelo bem ajeitado, tocando, roçando apenas, os ombros. O pescoço gracioso. Os peitos, ah, os peitos, notáveis! Cheios, não excessivamente. Na medida certa para o corpo e para a idade. Têm presença. Não o tipo de presença dos peitos juvenis, pontudos, que apelam  à fantasia de quem está do outro lado da mesa, que excitam o desejo e a vontade  de mordiscá-los! Não; peitos de quem já viveu uma vida, testemunhas de noites apaixonadas e ardentes. Peitos históricos, por assim dizer. 

Beija-os na imaginação. Sim, aqueles peitos devem ter uma honrosa história. Lambê-los seria cultuar as eras, os amores que por ali passaram, as bocas felizes que ali estiveram.
    

O devaneio é interrompido: as mulheres pedem a conta, levantam-se, arrumam-se e dirigem-se para a saída. E, então, pode vê-la de corpo inteiro. A silhueta completa, sem excessos, e sem carências, nada sobrando e nada faltando, não como o jeito esguio próprio das garotas, saborosas ao olhar, mas tanto quanto. O deleite daquela imagem é outro. Corpo anfitrião, pois já sabe receber, aprendeu com o tempo, que é o senhor da experiência. Excitado, imagina-a nua, na cama, abrindo-se e convidando-o a entrar.
    

Enquanto as mulheres recolhem suas bolsas, rabisca rapidamente um cartão em branco. Carrega consigo vários para preenchê-los na hora da necessidade, quando alguém lhe pede um cartão de visitas, por exemplo, e daí tem que esperar que ele o preencha, senão entende que o pedido é apenas formal e o interlocutor não está interessado de fato.
    

Escreve: “Seu telefone, minha bela, por favor, para que eu possa conversar com você, depois.” E pede ao garçom que entregue à senhora.
    

Observa o movimento do rapaz que se apressa em atender a solicitação do “doutor”. Vê quando a dama recebe o cartão e – regozijo! –  acompanha sua expressão facial durante a leitura. Coisa rara, surpreender a espontaneidade de alguém que recebe um recado! Quantas vezes na vida temos esse privilégio?
    

Ela lê, expressão serena da mulher vivida. Um pouco incrédula, ergue ligeiramente a sobrancelha. Vira-se para o autor e encontra olhos fixos em sua direção. Desarma-se, abre um sorriso, um belo sorriso desde sempre. Guarda o cartão no bolsinho da carteira. Olha novamente, e sorri novamente. Ah! Um sorriso que inunda a alma. Ele retribui, agradecido. Ela sai. 

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Bela cidade!

            Os candidatos que estão na disputa eleitoral, pelos cargos executivo e legislativo, têm uma dívida com o povo: apresentar um projeto de cidade “bela”.
            As cidades merecem ser tratadas como algo belo. Útil, mas belo. Prático, mas belo. Funcional, mas belo.
            Não, os cidadãos não querem uma cidade bonitinha, ingênua, agradável e fácil. A cidadania merece o belo que é útil, prático e funcional. Aqueles que desejam exercer funções tão importantes devem isto ao povo.
            A beleza é reprimida todas as vezes que viver nas cidades se torna disfuncional, não-prático e sem utilidade. Numa palavra: sofrível.
            A beleza está reprimida em nossas lembranças e sensações com ela própria. É como se a beleza fosse artigo supérfluo e insignificante diante de tantas necessidades. Isto quer dizer que estamos perdendo a sensibilidade que só a beleza oferece.
            Erramos denominando de belo apenas ao visual dos lugares como: canteiros centrais floridos, árvores com refletores de lâmpadas coloridas, semáforos modernos, uma escultura ou monumentos em praças, iluminação especial.
            Entretanto, precisamos considerar a que estilo de vida estes investimentos têm nos levado: poluição sonora e atmosférica; alta concentração de pessoas em espaços apertados; valorização imobiliária que leva ao enriquecimento de poucos e, consequente, empobrecimento da grande maioria por não terem acesso aos mesmos recursos; tráfego pesado e poucas vagas de estacionamento; pouco tempo para se alimentar convenientemente; gastos com combustíveis, porque as moradias estão mais distantes dos locais de trabalho; péssimo serviço de transporte público; etc.
            Tais condições geram: alto índice de absenteísmo, obsessões sexuais, abandono das escolas e baixo índice de aprendizagem, alimentação compulsiva, dependência química, escapismos em forma de viagens turísticas, violência, irritação e raiva, ataques de pânico, ansiedade, distúrbios de caráter, etc.
            Lembremo-nos: Narciso se afogou não por si mesmo, não pelo reflexo na água, mas pelo distúrbio da beleza que o levou à desordem, à feiúra, à morte.
            Não, a beleza não está nos olhos que quem vê. Não, a beleza não é relativa.
            A beleza é o perfume que os deuses nos deixam quando nos visitam. Está no incomum, no maravilhoso, no delicioso, no “do-outro-mundo”. Infelizmente, tendemos a tornar tudo como comum, corriqueiro, normal. E, os políticos nos devem isto: revelar o incomum no comum, executar projetos que nos levem a qualidade de vida, liberdade, aos prazeres dos sentidos e não aos avanços tecnológicos sem alma, a doçura e ternura.
            O melhor que os candidatos podem fazer pelo povo começa com o que podem fazer com eles, se perguntando, por exemplo: por que gosto da minha cidade, por que é gostosa para mim e para minha família, ou por que é gostosa para todos? Esta cidade me inspira a viver como humano, ou como um empresário, comerciante, médico, psicólogo, militar, professor? Que sentido tem as palavras de Rainer M. Rilke para mim: “Abandone a selvageria. Seja terno ao toque. Acaricie a você mesmo, para sentir que você é suave. É o seu próprio centro que você acaricia. Sua reflexão deve ser suave como a luz da manhã. E, desta forma, você nos mostrará como Narciso é redimido!”

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)

O ‘ouro’ de Thiago Braz da Silva

            O campeão e recordista olímpico no Salto com Vara, o mariliense Thiago Braz da Silva, medalha de ouro nos Jogos Olímpicos Rio 2016, compartilhou um pouco de sua história de vida e carreira esportiva: abandonado pela mãe e criado pelos avós, por dias esperou, com a mochila nas costas, que a mãe retornasse para buscá-lo, o que nunca aconteceu; conheceu a modalidade através do seu tio Fabiano Braz; e, há dois anos passou a ser treinado pelo técnico ucraniano Vitaly Petrov.
            Sua história de vida revela mais do que um caso de superação: Thiago se aproxima das feridas que a vida lhe infligiu (injusta e erradamente), dos segredos e das confissões de suas orações mais íntimas, da criança e da infância imaginárias, isto é, daquilo que Sigmund Freud e Carl Gustav Jung concordam – a criança e a infância filogenética, além da criança e infância reais, pois é imaginal, arquetípica, não-empírica.
            Neste sentido, Thiago nos oferece uma grande oportunidade para refletirmos quanto a “nossa” criança e infância: tudo aquilo que é simples, ingênuo, rejeitado, pobre, abandonado, comum – o órfão – da sociedade e da psique, mas que nestas condições pode alterar pelo enfrentamento as duras realidades a que estamos sujeitos.
            Não apenas devemos nos sentir responsáveis pela “nossa” criança e infância, social e psiquicamente, mas sentir que somos a própria criança e infância que precisa de atenção, cuidados, amparo, acolhimento se não quisermos vivenciar a imagem da criança morta, da esperança perdida, da falta de criatividade e de sentido.
            “Nós descobrimos a criança abandonada acima de tudo nos sonhos, onde nós próprios, ou uma criança nossa, ou uma desconhecida, é negligenciada, esquecida, chora, está em perigo ou em necessidade. A criança afirma sua presença através dos sonhos; mesmo abandonada podemos ouvi-la, escutar seu chamado”, segundo James Hillman (Estudos de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981, p. 26-27).
            Precisamos ir além da culpa que esta situação pode nos trazer, aliás, nos envolver participativamente com toda a história que envolve as condições de abandono e rejeição para que não se repitam, cuidando dos elementos novos e tenros que precisam de ajuda para crescer.
            Tendemos a achar que existe alguma coisa fundamentalmente errada na criança que a faz um ser frágil, carente, perversa (como querem alguns da psicologia) e, por isso mesmo sujeita ao abandono. Empenhamo-nos a tirá-la da condição da infância pela educação, batismo, imunização. Não as aceitamos como são. Assim impedimos a criança de cumprir a sua função, a de alterar a personalidade, fazer a combinação dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade.
            Thiago expõe ao mundo que o abandono e perigo sofridos são como condições para o desenvolvimento da capacidade de ser independente; de experimentar-se no processo de maturação dos fatores contrastantes da personalidade, em busca de uma amplitude de consciência; de forças interiores para enfrentar os perigos e as agressões.
            O ‘ouro’ que Thiago pôs em nosso peito é o do “motivo da criança”, como afirma Jung: “A criança é tudo o que é abandonado, exposto e ao mesmo tempo o divinamente poderoso; ela é o início insignificante, duvidoso, e o fim triunfante. A ‘eterna criança’ no homem é uma experiência indescritível; um estado de inadaptação, uma desvantagem e uma prerrogativa divinas; em último lugar, um imponderável que constitui o valor ou desvalor último de uma personalidade” (Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 178).

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Pai e filha

            Em tempos de misoginia – ódio, desprezo e repulsa ao gênero feminino e às características a ele associadas -, violência doméstica e nas ruas, cumprir com as exigências culturais e econômicas como trabalhar fora, educar os filhos, cuidar da casa, atender aos padrões de beleza e da moda, competir no mercado de trabalho, tem se mostrado um grande desafio para a grande maioria das mulheres.
            Neste contexto, o pai desempenha um papel crucial na vida das filhas, independente da faixa etária, se quiser exercer uma paternidade suficientemente boa.
            O pai é a pessoa que pode comunicar à filha, com segurança, que ela pode ser mulher num mundo que exige muito dela, sem que despreze sua feminilidade.
            É ele que favorece a ideia de que ela pode, inclusive, ser mãe, isto é, dá acesso aos vários caminhos que estão disponíveis em nossa cultura, para que ela escolha, decida e continue a ser quem ela é, que desenvolva e explore, como mulher, seu pleno potencial, sua identidade pessoal, sua vocação, seu lado assertivo e agressivo, sua expressão sexual, seu caminho espiritual.
            “O resultado da luta de uma mulher para sentir-se psicológica e socialmente inteira e integrada, e ao mesmo tempo ser psicológica e socialmente diversificada é, em grande medida, moldado pelo relacionamento pai-filha”, afirma o analista junguiano Andrew Samuels, em “A psique política” (Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 179).
            As filhas esperam que seus pais sejam homens não aliados aos padrões restritivos colocados sobre as mulheres, mas sim, alguém para quem existem muitas perspectivas e modos de ser mulher.
            É importante que o relacionamento pai-filha seja travado numa energia psicológica que ela viva coerentemente com seus próprios sentimentos, impulsos, fantasias e instintos, sem a famigerada culpa da “supermulher” e “supermãe” conforme os padrões veiculados pelos meios de comunicação dirigidos ao público feminino.
            O relacionamento pai-filha atua como pano de fundo e pode ser suficiente ou insuficiente, quer dizer, proporcionar satisfação ou insatisfação à vida da mulher.
            Não são poucas as mulheres que tentam manter sua agressão fora de seu casamento e sob controle no trabalho, mas são consumidas pelo medo de que podem explodir num “ataque de nervos”, por que seus pais reprimem, não aprovam, e/ou não sabem lidar com a agressividade delas.
            Sentimentos, impulsos, fantasias e instintos nos caracterizam como seres humanos, e as mulheres têm direito de expressá-los. E, os pais exercem um crucial papel nisso, no sentido de ajudar as filhas a lidarem com isto sem culpa, ao contrário, valorizar-se e integrar os fatores inconscientes ao modo de ser mulher.
            Os efeitos de um pai emocional ou fisicamente ausente/distante podem ser profundos para a filha: sentir-se desvalidada pelos homens, até pelos filhos que venha a ter ou já têm; achar que não possui nenhum poder de sedução e ser deixada pelo/a companheiro/a; ter pouca confiança em si mesma, em suas capacidades de trabalho principalmente se trabalha com homens menos capazes do que ela.
            Reflita sobre isso, se você é pai de uma mulher. Feliz Dia dos Pais!

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Conscientização: Fundamento da Democracia

            Nem sempre as imagens comunicam a verdadeira face das pessoas e seus reais objetivos. Muito facilmente nos deixamos envolver por imagens sentimentalmente embelezadas, como se a realidade não tivesse obscuridades.
            Por exemplo: o governo interino do País utiliza a imagem da Bandeira Nacional com o lema “Ordem e Progresso”, como plataforma ideológica de defender decisões liberais, na tentativa de conservar e aperfeiçoar aquilo que existe de bom, a “Ordem”, através da correção e eliminação do que é ruim, para se alcançar o “Progresso”.
            Sim, até governo interino tem ideologia; e, a desse é defender a doutrina religiosa positivista: a busca e a manutenção de condições sociais básicas – “respeito aos seres humanos, salários dignos e o melhoramento material, intelectual e moral” da Nação -, conforme a definição do referido lema no portal Wikipédia, que o próprio governo tem se utilizado e processado alterações na defesa de seus interesses. Entretanto, as suas propostas e decisões têm mostrado a direção contrária a estes conceitos. A hipocrisia, como manifestação da perversão, se desmascara.
            Neste contexto, nossos olhares precisam refletir sobre os acontecimentos históricos, remotos e contemporâneos, que marcam a nossa democracia. A justificativa para esse exercício está além de uma mera oposição ao governo interino e seus planos, mas, trata-se de, séria e verdadeiramente, procurarmos relacionar o desenvolvimento político com o nosso desenvolvimento psicológico pessoal com a democracia.
            Esse desenvolvimento não é alcançado se permanecermos em nossas “zonas de conforto”. É preciso um envolvimento pessoal com os conteúdos do inconsciente cultural brasileiro que tocam às fragilidades do nosso processo democrático.
            Não podemos encobrir com subterfúgios as tragédias político-sociais e econômicas experimentadas pela sociedade brasileira. Antes, temos de exigir de nós mesmos um envolvimento profundo com as condições deste momento, assumindo nossas sombras pessoais e enfrentar os fatores políticos do processo em curso, do contrário, as nossas estruturas psicológicas e sociais sofrerão fortes abalos. A conscientização política e psicológica é o fundamento da vida democrática de um povo.
            Temos de entrar em acordo, depressa, com a nossa memória histórica. Quando o tempo passado se ausenta, o presente é romantizado. O apagamento e desapego da história enganam com uma aparente inofensiva inocência.
            Portanto, o desenvolvimento político passa por um desenvolvimento psicológico quando nos relacionamos com os fatores inconscientes que nos levam a um distanciamento dos processos históricos da nossa democracia. O processo democrático real depende da relação política com as nossas zonas externas e internas, do mundo real e do reino interior, da relação consciência e inconsciente.
            A Bandeira Brasileira tem mais do que “Ordem e Progresso” – empobrecemos o processo político interno e externo se nos identificarmos com isto, apenas. Temos de ir além da beleza sentimental da imagem verde e amarela.
            “Aquilo a que damos o nome de civilização, [...] tem uma outra face, a de uma ave de rapina cruelmente tensa, espreitando a próxima vítima, face digna de uma raça de larápios e de piratas. Todas a águias e outros animais rapaces que ornam nossos escudos heráldicos me parecem os representantes psicológicos apropriados de nossa verdadeira natureza”, afirma C. G. Jung (Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 250).

(Sílvio Lopes Peres – Psic. Clínico – CRP 06/109971 – Candidato a Analista pela Associação Junguiana do Brasil (AJB/Campinas), filiada à IAAP – International Association for Analytical Psychology (Zurique/Suíça) - Fones: (14) 99805.1090 / (14) 98137.8535)