sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Um lapso desculpável

por Roque Tadeu Gui

Desculpe! Erramos!

Acontece. Às vezes, no afã de escrever o texto, a gente tropeça. Foi o que ocorreu em minha crônica “Ingrid”.

Lá pelas tantas, faço uma referência à atriz Alicia Vikander, que emprestou voz à Ingrid para a narrativa de sua história. Associei Alicia ao filme Her (2013), quando, na verdade, pretendia me referir a Ex Machina (2015). Lambança geral na citação! Resta colocar ordem na bagunça.

A confusão se explica. Ambos os filmes são excelentes filmes de ficção. A atriz, em Her, é  Scarlett Johansson, no qual participa in off apenas com sua voz sedutora. Em Ex Machina, este sim, com Alicia Vikander, a atriz representa uma mulher criada em laboratório e portadora de sofisticada inteligência artificial. Gostei muito de ambos os filmes e em virtude de associações afetivas misturei tudo.

Aliás, Alicia Vikander está também em “A garota dinamarquesa” (The Danish Girl, 2015) e aparece cotada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Na crista da onda, a conterrânea de Ingrid!

O lapso inocente cometido pelo cronista talvez possa trazer alguma luz para a reflexão cinéfila. Ao assistir a um filme, nunca vemos apenas o filme. Mercê do fluxo imaginativo, estimulado pela película, cruzamos referências, fundimos imagens, conectamos emoções, transitamos de um filme para outro, sem a completa participação de nossa consciência. Diante de uma obra de arte, o impulso criativo de nossa mente não resiste a criar seu próprio enredo, suas histórias e seus personagens. A imaginação, qual diretor de nossa intimidade, altera roteiros, veste personagens, escala alguns, confere nuances afetivas.

É assim que, da voz de Scarlett se faz a voz de Alicia e desta a de Ingrid. Tudo envolto pelo fascínio do mundo feminino exposto em Her, Ex Machina e Jag är Ingrid. Sim, este último é o título, em sueco, do Eu sou Ingrid Bergman.

Ingrid

por Roque Tadeu Gui

Talvez uma vida somente possa ser compreendida quando vista do futuro para o passado.

Embora a ideia não seja original, ganhou evidência para mim ao assistir “Eu sou Ingrid Bergman”, filme realizado em homenagem aos 100 anos do nascimento da atriz sueca em 1915, dirigido por Stig Björkman, seu conterrâneo.

Uma cinebiografia narrada em primeira pessoa na voz de Alicia Vikander (Her, 2014), atriz contemporânea muito prestigiada na Suécia, alterego de Ingrid, baseada em diários, entrevistas e filmes amadores feitos pela própria Ingrid, enriquecida por comentários dos quatro filhos da atriz, mas nada de pieguice do tipo “mamãe era demais”!

Fica claro que Ingrid nasceu para atuar e, circunstancialmente, ser mãe. Mais amiga do que mãe, segundo ela mesma, e os filhos.

Ingrid foi uma quarta filha, única que vingou. Perdeu a mãe aos três anos e ficou aos cuidados do pai até os quinze, perdendo-o também.

Com o pai aprendeu a amar os filmes e, segundo a psicanalista que me acompanhou no programa de cinéfilo, aprendeu a gostar de ser vista por um homem por detrás de uma câmera. Daí seu desejo de reiterar a experiência ao longo da vida…

Com um corpo belo e forte, loira, verdadeira descendente viking, uma valquíria, encantou o cinema americano, italiano e francês. A começar por diretores como Hitchcock, George Cukor, Roberto Rosselini, Jean Renoir, Vincente Minelli e Ingmar Bergman.

Em nome da arte, os filhos sofrerão certo abandono, o mesmo vivido pela criança Ingrid, lançada ao mundo sem a companhia de irmãos, abandonada pela mãe morta e privada do olhar cinetoscópico do pai, segundo a opinião confiável de minha acompanhante psi.

Amará vários homens, encantar-se-á com diretores, substitutos do pai no ato confirmatório de ser admirada através das lentes. Percebo o olhar arguto e afirmativo de minha amiga…

Uma mulher que nasceu para atuar. Olhando a partir de hoje, um século passado, podemos compreender o que se passou.

Seria necessária a experiência, ainda que inominada à época, de sobreviver a três irmãos que não "estrearam" no mundo, se não houvesse algo a ser realizado? Uhm, posso sentir a desconfiança da psicanalista em relação a meu argumento: "isto está me parecendo teleologia, pré-determinação, destino, para dizer pouco!"

Mas, admitamos por um momento que o gênio performático encarnado por Ingrid precisava de circunstâncias especiais para vir ao mundo, sofrendo perdas que mobilizassem a energia necessária para realizar sua obra.

Se assim for, Ingrid perderá o olhar cinematográfico do pai para buscar ansiosamente o olhar do outro atrás da câmera. A perda da mãe, abandono simbólico (posso ver minha companheira sorrindo) lhe dará forças para deixar os filhos e realizar seu trabalho no mundo.

Minha amiga dirá que se tratava de narcisismo compensatório! Sei não… Talvez o gênio precisasse disso, se olharmos da frente para trás…

Dois pensamentos que talvez se encontrem em algum ponto.

Num, a pequena Ingrid, vítima de circunstâncias biográficas, repete o script traumático vida afora. Afortunadamente, converte seu sofrimento em trabalho de encantamento artístico. Minha amiga tem um nome bonito para isso: “sublimação”.

Noutro, a menina Ingrid é portadora de um gênio que utiliza as circunstâncias da vida para adquirir o estofo necessário para criar a obra de arte.

Em ambas as perspectivas, a personagem Ingrid não possui completa autoridade sobre si, mas cumpre um “a priori”, um desígnio, uma missão. Uma vida que não podia ser vivida de outra forma.

Volto-me para minha cúmplice cinematográfica. Percebo um discreto olhar de benevolente tolerância.

A Babel das Fotos

por Roque Tadeu Gui

Estou no alto do Hotel Las Américas, Cartagena das Índias, Colômbia. Comigo, esposa e casal amigo. Estamos no Pacífico, margeando o Caribe; a imensidão do mar, que vai de ponta a ponta do horizonte, cobre os 180 graus de visão. A vista é imponente. Abaixo, moradias que, vistas de cima, parecem casinhas de brinquedo, contrastando com a paisagem larga da natureza.

O impulso a fotografar as imagens estonteantes é quase que natural em tais ocasiões e concorre com o desejo de usufruir das sensações visuais e epidérmicas: aqui o vento forte sopra um calor escaldante que faz Natal e Fortaleza parecerem um paraíso morno.

Munidos de nossos celulares, clicamos ininterruptamente. Clique daqui, clique dali, e dou-me conta de que todos do meu pequeno grupo estão fotografando os mesmos objetos: o mar ali à frente, o horizonte aberto de ambos os lados, as residências, a vegetação, a cidade de Cartagena mais adiante.

Penso que mais tarde compartilharemos as mesmas imagens e teremos réplicas de tudo que foi fotografado. Em um mesmo rolo de câmera digital as fotos se misturarão e quase não saberemos o que foi eu que fotografei, o que foi minha mulher ou nossos amigos. O rápido compartilhamento por whatsapp cuidará de fazer a mescla final. Coisas da simultaneidade digital!

No jantar talvez tenhamos alguma discussão sobre quem foi o autor de alguma foto particularmente bem enquadrada. Mas, o sentimento geral será o de que não importa muito. Com tranquilidade, poderei assumir minha culpa por usurpar a autoria desta ou daquela foto.

Ao dar-me conta desses pensamentos, surpreendo-me com a ideia de terceirizar o clique fotográfico! Minha mulher já bateu, ou baterá, aquela foto, meu amigo também já clicou. Posso deixar de fazê-lo; de qualquer modo, ao final, as imagens repousarão em meu acervo pessoal. Guardarei algumas, descartarei outras, ao meu bel-prazer. Meu devaneio talvez anuncie a morte do fotógrafo, uma paráfrase da morte do autor.

Guardo meu celular e passo a observar os detalhes da paisagem. A observação pausada, despreocupada e fina, não facilmente compartilhada, talvez escape à Babel das Fotos.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Meiacinco

por Roque Tadeu Gui

Dia de seu aniversário. À noite, receberá alguns amigos, filhas, genros e netos para um jantar carinhosamente organizado pela mulher. 

Decide não trabalhar, tirar uma folga para perambular pela cidade, olhar vitrines, quem sabe comprar um par de sapatos novos, bem que está precisando, passar numa livraria, vício incontornável e, quem sabe, comprar mais uma caneta tinteiro para a sua coleção, daquelas que têm bombinha, porque as de cartucho são muito modernas e práticas e ele gosta mesmo é do modelo tradicional.
    

Bom jeito de passar o dia, curtir um pouco da solidão que tornará o encontro com a família e amigos ainda mais gratificante. Sabe da importância dessas criaturas que o acompanham vida afora, ainda que, por vezes, também o incomodem. Solidão é bom quando se tem para onde voltar.
    

Vai almoçar no restaurante libanês de sua preferência. Como sempre faz, pede um arak, com “apenas uma pedra de gelo”, e água com gás, que não será adicionada à bebida, porque então viraria um ouzo, bebida refrescante, de aspecto leitoso, apreciada pelos vizinhos gregos. Não! Arak puro! Vá lá, só com uma pedrinha de gelo para refrescar, mas deixando o teor etílico o mais íntegro possível.
    

Uma bela refeição! Não é glutão, mas aprecia uma boa comida. E delicia-se com o arak que só toma quando vem aqui. E divaga. Devaneia, pensamentos sem rumo, sem compromisso. Vai para o passado, flerta com o futuro, vagabundeia pelo presente.
    

Olha ao redor. Na mesa ao lado, duas senhoras. Sim, senhoras, não moças, não jovens, melhor, senhoras. Toma-se por referência. Se ele é um senhor, como todos insistem, então as vizinhas de mesa são senhoras! Ponto.
    

Chama-lhe a atenção aquela que está em seu angulo de visão. Rosto cheinho, não gordo, com certeza. Cheinho, próprio da idade, viçoso. Cabelo bem ajeitado, tocando, roçando apenas, os ombros. O pescoço gracioso. Os peitos, ah, os peitos, notáveis! Cheios, não excessivamente. Na medida certa para o corpo e para a idade. Têm presença. Não o tipo de presença dos peitos juvenis, pontudos, que apelam  à fantasia de quem está do outro lado da mesa, que excitam o desejo e a vontade  de mordiscá-los! Não; peitos de quem já viveu uma vida, testemunhas de noites apaixonadas e ardentes. Peitos históricos, por assim dizer. 

Beija-os na imaginação. Sim, aqueles peitos devem ter uma honrosa história. Lambê-los seria cultuar as eras, os amores que por ali passaram, as bocas felizes que ali estiveram.
    

O devaneio é interrompido: as mulheres pedem a conta, levantam-se, arrumam-se e dirigem-se para a saída. E, então, pode vê-la de corpo inteiro. A silhueta completa, sem excessos, e sem carências, nada sobrando e nada faltando, não como o jeito esguio próprio das garotas, saborosas ao olhar, mas tanto quanto. O deleite daquela imagem é outro. Corpo anfitrião, pois já sabe receber, aprendeu com o tempo, que é o senhor da experiência. Excitado, imagina-a nua, na cama, abrindo-se e convidando-o a entrar.
    

Enquanto as mulheres recolhem suas bolsas, rabisca rapidamente um cartão em branco. Carrega consigo vários para preenchê-los na hora da necessidade, quando alguém lhe pede um cartão de visitas, por exemplo, e daí tem que esperar que ele o preencha, senão entende que o pedido é apenas formal e o interlocutor não está interessado de fato.
    

Escreve: “Seu telefone, minha bela, por favor, para que eu possa conversar com você, depois.” E pede ao garçom que entregue à senhora.
    

Observa o movimento do rapaz que se apressa em atender a solicitação do “doutor”. Vê quando a dama recebe o cartão e – regozijo! –  acompanha sua expressão facial durante a leitura. Coisa rara, surpreender a espontaneidade de alguém que recebe um recado! Quantas vezes na vida temos esse privilégio?
    

Ela lê, expressão serena da mulher vivida. Um pouco incrédula, ergue ligeiramente a sobrancelha. Vira-se para o autor e encontra olhos fixos em sua direção. Desarma-se, abre um sorriso, um belo sorriso desde sempre. Guarda o cartão no bolsinho da carteira. Olha novamente, e sorri novamente. Ah! Um sorriso que inunda a alma. Ele retribui, agradecido. Ela sai.