sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ingrid

por Roque Tadeu Gui

Talvez uma vida somente possa ser compreendida quando vista do futuro para o passado.

Embora a ideia não seja original, ganhou evidência para mim ao assistir “Eu sou Ingrid Bergman”, filme realizado em homenagem aos 100 anos do nascimento da atriz sueca em 1915, dirigido por Stig Björkman, seu conterrâneo.

Uma cinebiografia narrada em primeira pessoa na voz de Alicia Vikander (Her, 2014), atriz contemporânea muito prestigiada na Suécia, alterego de Ingrid, baseada em diários, entrevistas e filmes amadores feitos pela própria Ingrid, enriquecida por comentários dos quatro filhos da atriz, mas nada de pieguice do tipo “mamãe era demais”!

Fica claro que Ingrid nasceu para atuar e, circunstancialmente, ser mãe. Mais amiga do que mãe, segundo ela mesma, e os filhos.

Ingrid foi uma quarta filha, única que vingou. Perdeu a mãe aos três anos e ficou aos cuidados do pai até os quinze, perdendo-o também.

Com o pai aprendeu a amar os filmes e, segundo a psicanalista que me acompanhou no programa de cinéfilo, aprendeu a gostar de ser vista por um homem por detrás de uma câmera. Daí seu desejo de reiterar a experiência ao longo da vida…

Com um corpo belo e forte, loira, verdadeira descendente viking, uma valquíria, encantou o cinema americano, italiano e francês. A começar por diretores como Hitchcock, George Cukor, Roberto Rosselini, Jean Renoir, Vincente Minelli e Ingmar Bergman.

Em nome da arte, os filhos sofrerão certo abandono, o mesmo vivido pela criança Ingrid, lançada ao mundo sem a companhia de irmãos, abandonada pela mãe morta e privada do olhar cinetoscópico do pai, segundo a opinião confiável de minha acompanhante psi.

Amará vários homens, encantar-se-á com diretores, substitutos do pai no ato confirmatório de ser admirada através das lentes. Percebo o olhar arguto e afirmativo de minha amiga…

Uma mulher que nasceu para atuar. Olhando a partir de hoje, um século passado, podemos compreender o que se passou.

Seria necessária a experiência, ainda que inominada à época, de sobreviver a três irmãos que não "estrearam" no mundo, se não houvesse algo a ser realizado? Uhm, posso sentir a desconfiança da psicanalista em relação a meu argumento: "isto está me parecendo teleologia, pré-determinação, destino, para dizer pouco!"

Mas, admitamos por um momento que o gênio performático encarnado por Ingrid precisava de circunstâncias especiais para vir ao mundo, sofrendo perdas que mobilizassem a energia necessária para realizar sua obra.

Se assim for, Ingrid perderá o olhar cinematográfico do pai para buscar ansiosamente o olhar do outro atrás da câmera. A perda da mãe, abandono simbólico (posso ver minha companheira sorrindo) lhe dará forças para deixar os filhos e realizar seu trabalho no mundo.

Minha amiga dirá que se tratava de narcisismo compensatório! Sei não… Talvez o gênio precisasse disso, se olharmos da frente para trás…

Dois pensamentos que talvez se encontrem em algum ponto.

Num, a pequena Ingrid, vítima de circunstâncias biográficas, repete o script traumático vida afora. Afortunadamente, converte seu sofrimento em trabalho de encantamento artístico. Minha amiga tem um nome bonito para isso: “sublimação”.

Noutro, a menina Ingrid é portadora de um gênio que utiliza as circunstâncias da vida para adquirir o estofo necessário para criar a obra de arte.

Em ambas as perspectivas, a personagem Ingrid não possui completa autoridade sobre si, mas cumpre um “a priori”, um desígnio, uma missão. Uma vida que não podia ser vivida de outra forma.

Volto-me para minha cúmplice cinematográfica. Percebo um discreto olhar de benevolente tolerância.

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