Talvez uma vida somente possa ser
compreendida quando vista do futuro para o passado.
Embora a ideia não seja original,
ganhou evidência para mim ao assistir “Eu sou Ingrid Bergman”, filme realizado
em homenagem aos 100 anos do nascimento da atriz sueca em 1915, dirigido por
Stig Björkman, seu conterrâneo.
Uma cinebiografia narrada em primeira
pessoa na voz de Alicia Vikander (Her, 2014), atriz contemporânea muito
prestigiada na Suécia, alterego de Ingrid, baseada em diários, entrevistas e
filmes amadores feitos pela própria Ingrid, enriquecida por comentários dos
quatro filhos da atriz, mas nada de pieguice do tipo “mamãe era demais”!
Fica claro que Ingrid nasceu para
atuar e, circunstancialmente, ser mãe. Mais amiga do que mãe, segundo ela
mesma, e os filhos.
Ingrid foi uma quarta filha, única
que vingou. Perdeu a mãe aos três anos e ficou aos cuidados do pai até os
quinze, perdendo-o também.
Com o pai aprendeu a amar os filmes
e, segundo a psicanalista que me acompanhou no programa de cinéfilo, aprendeu a
gostar de ser vista por um homem por detrás de uma câmera. Daí seu desejo de
reiterar a experiência ao longo da vida…
Com um corpo belo e forte, loira,
verdadeira descendente viking, uma valquíria, encantou o cinema americano,
italiano e francês. A começar por diretores como Hitchcock, George Cukor,
Roberto Rosselini, Jean Renoir, Vincente Minelli e Ingmar Bergman.
Em nome da arte, os filhos sofrerão
certo abandono, o mesmo vivido pela criança Ingrid, lançada ao mundo sem a
companhia de irmãos, abandonada pela mãe morta e privada do olhar cinetoscópico
do pai, segundo a opinião confiável de minha acompanhante psi.
Amará vários homens, encantar-se-á
com diretores, substitutos do pai no ato confirmatório de ser admirada através
das lentes. Percebo o olhar arguto e afirmativo de minha amiga…
Uma mulher que nasceu para atuar.
Olhando a partir de hoje, um século passado, podemos compreender o que se
passou.
Seria necessária a experiência, ainda
que inominada à época, de sobreviver a três irmãos que não
"estrearam" no mundo, se não houvesse algo a ser realizado? Uhm,
posso sentir a desconfiança da psicanalista em relação a meu argumento:
"isto está me parecendo teleologia, pré-determinação, destino, para dizer
pouco!"
Mas, admitamos por um momento que o
gênio performático encarnado por Ingrid precisava de circunstâncias especiais
para vir ao mundo, sofrendo perdas que mobilizassem a energia necessária para
realizar sua obra.
Se assim for, Ingrid perderá o olhar
cinematográfico do pai para buscar ansiosamente o olhar do outro atrás da
câmera. A perda da mãe, abandono simbólico (posso ver minha companheira
sorrindo) lhe dará forças para deixar os filhos e realizar seu trabalho no
mundo.
Minha amiga dirá que se tratava de
narcisismo compensatório! Sei não… Talvez o gênio precisasse disso, se olharmos
da frente para trás…
Dois pensamentos que talvez se
encontrem em algum ponto.
Num, a pequena Ingrid, vítima de
circunstâncias biográficas, repete o script traumático vida afora.
Afortunadamente, converte seu sofrimento em trabalho de encantamento artístico.
Minha amiga tem um nome bonito para isso: “sublimação”.
Noutro, a menina Ingrid é portadora
de um gênio que utiliza as circunstâncias da vida para adquirir o estofo necessário
para criar a obra de arte.
Em ambas as perspectivas, a
personagem Ingrid não possui completa autoridade sobre si, mas cumpre um “a
priori”, um desígnio, uma missão. Uma vida que não podia ser vivida de outra
forma.
Volto-me para minha cúmplice
cinematográfica. Percebo um discreto olhar de benevolente tolerância.
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